De
acordo com um famoso livro de autoajuda "os homens são de Marte e as
mulheres são de Vênus", o que é uma outra forma de dizer que a diferença entre os
dois sexos seria tão grande que é como se habitassem planetas distintos. Mas
paremos para pensar um pouco: homens e mulheres são realmente tão diferentes
assim? Grande parte das pessoas provavelmente diria que sim, afinal basta olhar
para perceber que, em geral, homens e mulheres se vestem de formas diferentes e
se comportam de maneiras distintas - o que sinaliza que também, e talvez,
pensem e sintam diferentemente.
Eu não
discordaria totalmente desta resposta, mas faria mais algumas perguntas: por
que homens e mulheres são diferentes? Será que já nasceram diferentes ou estas
diferenças foram sendo construídas no decorrer do processo de desenvolvimento?
Muitas pessoas, assim como muitos cientistas, tendem a acreditar na existência
de diferenças inatas entre homens e mulheres - e por inato quero dizer tudo
aquilo que a criança já possui ao nascer. Muitos cientistas acreditam que a
nossa masculinidade e a nossa feminilidade são construídas, ou no mínimo
pré-moldadas, antes mesmo de nascermos.
Nossa
genética, que herdamos de nossos pais, assim como a ação de certos hormônios
durante a gestação, fariam com que nossos cérebros se diferenciassem - e é esta
diferença que tornaria os homens essencialmente diferentes das mulheres e
vice-versa. O papel da cultura e da educação, ainda que não seja negado
completamente, é diminuído ao ser entendido como coadjuvante da biologia, esta
sim a verdadeira protagonista do processo de diferenciação sexual.
Alguns
autores vão além e buscam a explicação para as diferenças entre homens e
mulheres em nosso passado evolutivo. A narrativa é quase sempre a mesma: em um
passado distante, na "época das cavernas", os homens eram
responsáveis pela caça e pela procura de alimentos enquanto as mulheres pela
preparação de tais alimentos e pelo cuidado dos filhos. Esta narrativa,
amplamente disseminada pelos livros de autoajuda e de divulgação científica,
busca a explicação de nossos comportamentos atuais neste passado distante.
A
ideia é que homens e mulheres seriam diferentes atualmente porque
possuiriam histórias evolutivas diferentes, que teriam moldado seus genes de
forma diferenciada, gerando com isso cérebros e comportamentos igualmente
diferenciados. O grande problema de tal explicação é que ela permanece
hipotética - como, aliás, quase todas as explicações do campo da psicologia
evolutiva. A principal dificuldade é como saber com precisão como viviam os
seres humanos há 50 mil anos, momento em que a escrita ainda não tinha sido
inventada?
Os
arqueólogos bem que tentam, mas é muito difícil reconstruir fidedignamente este
passado baseando-se apenas nos escassos vestígios deixados por nossos
antepassados. Além disso, como apontam a neurocientista Catherine Vidal e a
jornalista científica Dorothée Benoit-Browaeys no livro Cérebro, sexo e poder, tal explicação não passa "de uma
representação mítica que consiste em projetar os nossos quadros mentais [do
presente] na cultura dos homens do passado".
Mais
recentemente, tal explicação tem se misturado a outras narrativas que envolvem
hormônios, neurônios e sinapses. A ideia básica é que a estrutura e o
funcionamento do nosso cérebro seriam determinados ou fortemente influenciados
pela dominância de certos hormônios. Se durante e após o período de gestação
formos inundados por hormônios "masculinos" nos masculinizaremos
- e teremos "cérebros masculinos"; se formos inundados por
hormônios "femininos", nos feminizaremos - e teremos "cérebros
femininos".
Esta
teoria explicaria tanto as características "típicas" masculinas e
femininas quanto a existência de "homens feminilizados" e
"mulheres masculinizadas", assim como dos(as) transexuais, que teriam
uma espécie de dominância hormonal inversa à de seu sexo biológico original. Os
hormônios seriam, assim, os grandes responsáveis por termos cérebros e
comportamentos "masculinos" e "femininos". Repare bem nas aspas
pois, de fato - como já apontei anteriormente - cérebros e hormônios não podem
ser masculinos ou femininos; somente as pessoas, ou seja, os indivíduos como um
todo, podem ser. A testosterona, por exemplo, é chamada de hormônio
masculino por ser mais elevada nos homens; no entanto, as mulheres também
possuem tal hormônio - assim como os homens possuem estrogênio, um hormônio
"feminino".
Da
mesma forma, é equivocado falar em comportamento masculino ou feminino pois a
forma como os homens e mulheres se comportam varia imensamente entre as
culturas - e mesmo dentro da mesma cultura - assim como variou no decorrer da
história. Os homens são mais agressivos e as mulheres mais dóceis? Depende.
Alguns indivíduos se encaixam dentro deste estereótipo; outros não. Por mais
que se queira generalizar, existem homens dóceis e mulheres agressivas e isto
não significa que tais indivíduos não sejam homens e mulheres; significa apenas
que eles não se encaixam nos estereótipos de gênero.
No
sensacional livro Homens não são de Marte,
mulheres não são de vênus, a psicóloga Cordelia Fine chama
de neurossexismo justamente as interpretações dos achados neurocientíficos que
naturalizam os estereótipos de gênero socialmente construídos. Como afirma a
autora, "algumas pessoas usam a neurociência de uma maneira que ela foi
frequentemente usada no passado: para reforçar, com toda a autoridade da
ciência, estereótipos e papéis antiquados".
E é
justamente contra este discurso cerebralista e neurossexista que a autora volta
sua mira. Felizmente ela não está sozinha nesta empreitada. Desde 2010 um
grupo de pesquisadoras que se descrevem como neurofeministas - que inclui a
própria Cordelia Fine - vem se articulando em uma rede internacional
denominada NeuroGenderings,
cuja proposta, segundo a pesquisadora Marina Nucci, é “criticar o dualismo e a noção de dismorfismo
sexual e discutir como fatos neurocientíficos sobre sexo e gênero são
produzidos, chamando atenção para o contexto histórico, cultural e político e
para as consequências éticas desses estudos”. Um dos principais focos desta
rede é justamente combater o neurossexismo.
Cabe
salientar que as neurofeministas não pretendem efetivar tal "combate"
simplesmente criticando as pesquisas neurocientíficas mas também, e
especialmente, produzindo ciência - tanto que uma frase bastante repetida pelas
pesquisadoras, e que dá título ao artigo de Nucci, é "Não chore,
pesquise". Embora tais pesquisadoras sejam comumente taxadas de
anti-neurociências a proposta delas não é simplesmente descartar a biologia,
mas entender de que forma nosso sistema nervoso interage com o ambiente. O
conceito de neuroplasticidade é extremamente importante nesse sentido, pois
aponta para o entendimento de que nosso cérebro é moldado continuamente no/pelo
mundo. Como afirma Fine em seu livro, "o nosso cérebro, como estamos
começando a entender, é modificado pelo nosso comportamento, pelo nosso
pensamento e pelo nosso mundo social.
A nova
perspectiva neuroconstrutivista do desenvolvimento do cérebro enfatiza o
emaranhado simples e estimulante de uma contínua interação entre os genes, o
cérebro e o ambiente". Para a autora, as diferenças entre os sexos/gêneros
devem ser entendidas levando-se em conta esta permanente interação. E é
por isso que, segundo este ponto de vista, seria equivocado dizer que homens
são de Marte e mulheres são de Vênus. Não! Homens e mulheres habitam o mesmo
mundo e são por ele formados - e suas diferenças não se devem simplesmente à
ação dos genes e hormônios, mas sim a um complexo processo de interação entre
biologia e cultura.
Observação: Um importante
estudo publicado em 2015 no prestigioso periódico Proceedings
of the National Academy of Sciences/PNAS apresentou fortes evidências de
que embora existam algumas diferenças no funcionamento cerebral de homens e
mulheres, tais diferenças não seriam suficientes para se falar em
"cérebros masculinos" e "cérebros femininos" - isto porque
haveriam também significativas diferenças entre os próprios homens e as
próprias mulheres.
Após
realizarem exames de ressonância magnética no cérebro de mais de 1400 homens e
mulheres e avaliarem tanto o volume de suas substâncias branca e cinzenta,
quanto a quantidade de conexões neuronais e espessura do córtex cerebral, os
pesquisadores concluíram que "embora existam diferenças de sexo/gênero no
cérebro e no comportamento, humanos e cérebros humanos são compostos de
'mosaicos' únicos de características, algumas mais comuns em mulheres
comparadas com homens, algumas mais comuns em homens em comparação com mulheres
e algumas comuns em mulheres e homens.
Nossos
resultados demonstram que, independentemente da causa das diferenças observadas
entre sexo/gênero no cérebro e no comportamento (natureza ou cultura), os
cérebros humanos não podem ser categorizados em duas classes distintas: cérebro
masculino/cérebro feminino. Comentando esta pesquisa, o psiquiatra Michael
Bloomfield da University College London, afirmou o seguinte: "Se os resultados deste estudo
forem replicados e relacionados ao pensamento e comportamento, este estudo não
apoia a teoria de que os homens são de Marte e as mulheres de Vênus. Em vez
disso, ele é uma evidência das ideias propostas pelo filósofo grego Platão e
desenvolvidas pelo psiquiatra suíço Carl Jung, que nossas mentes seriam parte
masculina e parte feminina".
Fonte: http://psicologiadospsicologos.blogspot.com.br/
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