Se o mês de Janeiro fosse um objeto, ele seria uns óculos ou uma
lupa. Seria uma espécie de lente capaz de nos ajudar a enxergar a nossa
realidade de forma mais clara. Veja bem: a nossa realidade. A realidade mais
próxima de nós, dentro de uma infinidade de outras realidades, mas que, mesmo
tão próxima e íntima, muitas vezes não a percebemos.
Janeiro,
de alguma forma, nos ajuda a enxergar a realidade mais íntima que nos
constitui: a realidade dos nossos pensamentos, sentimentos, desejos, afetos,
emoções e comportamentos. Ajuda a enxergarmos a realidade do nosso psiquismo,
das nossas maneiras de ser, agir, sentir e pensar – a realidade do que
verdadeiramente somos, podemos e sabemos. Em uma só expressão, a realidade do
nosso “eu”.
À
realidade do “eu”, Janeiro corresponde com uma possibilidade ímpar: a
possibilidade de fazermos uma profunda autoanálise das nossas vidas, dos
caminhos que já percorremos e dos rumos que queremos tomar. Não há, no ano,
oportunidade de tantas reflexões espontâneas sobre o nosso passado e nosso
futuro como as proporcionadas pelas características culturais de Janeiro.
Vejamos o porquê.
Fim de ano, explosão de sentimentos
Em Dezembro – último mês do ano –, os usos e costumes da nossa
sociedade nos convidam a participar de festividades e eventos com alto
teor afetivo: congraçamentos e confraternizações nos ambientes profissionais e
acadêmicos em que estamos inseridos e, mais intensamente ainda em função do
Natal, as perspectivas e os planejamentos de mais congraçamentos e confraternizações
junto aos nossos familiares e pessoas queridas. Todos esses movimentos
produzidos pela nossa cultura acabam por mobilizar incontáveis quantidades e
qualidades de sentimentos-pensamentos em nossas cabeças e em nossos corações.
Às
vezes, mais do que apenas incontáveis sentimentos – talvez, também,
impublicáveis. Um ano sempre passa com várias circunstâncias razoáveis de
mobilização afetiva ao longo dos seus dias, mas sempre se encerra com uma
avalanche de possibilidades emocionais ligadas à raiz de nossas condições
psíquicas: as questões familiares e sentimentais que nos acompanham, as
conversas sobre como foi o ano em meio a grupos de estranhos e conhecidos, os
balanços mentais que elaboramos a respeito das nossas realizações no ano
que passou e os questionamentos que todos nos fazem em relação aos projetos
para o ano novo.
Fim
de ano, portanto, é um tempo que nos convoca às reflexões. A sabedoria
intrínseca à humanidade escolheu esse momento para, com toda a força do
seu simbolismo, informar a todos os homens sobre a face da Terra algumas
condições fundamentais à sua Saúde Mental: de tempos em tempos, faz-se
necessário que paremos tudo o que estamos fazendo para reorganizarmos as nossas
forças, que olhemos para as nossas raízes existenciais, que fechemos alguns
ciclos e iniciemos outros.
Em
qualquer lugar do mundo, a “virada de ano” sempre mexeu com os sentimentos
humanos. Tanto por conta da quantidade de mobilização afetiva que Dezembro
possibilita, quanto pela quantidade de percepções que Janeiro suscita. Falemos
mais sobre elas.
Nossas percepções em Janeiro
Terminado o mês de Dezembro e a sua capacidade terapêutica de
nos colocar frente a frente com os balanços gerais das nossas vidas (assim como
com toneladas de sentimentos e pensamentos que esses balanços provocam),
Janeiro, normalmente, começa conjugando duas grandes questões: por um lado, uma
espécie de ressaca existencial (produto das profundas reflexões e imersões
a que Dezembro nos convida-obriga) e, por outro lado, um misto de
autocobrança, ansiedade e questionamentos em relação ao que faremos de
nossas vidas. Ao mesmo tempo em que estamos digerindo toda a mobilização
afetiva experimentada em Dezembro, passamos, também, a nos ver às voltas com as
questões relacionadas ao ano que se inicia.
Por isso, Janeiro tem
cara de domingo à tarde: clima de repercussão de tudo o que vivemos nos
últimos dias e apreensão – especialmente à noite – em relação a tudo o que virá
pela frente. Tal situação – o mergulho reflexivo e apreensivo que o mês de
Janeiro nos possibilita –, por si só é capaz de favorecer a revelação de
questões e características relacionadas às condições em que se encontra o nosso
psiquismo.
E, por isso, Janeiro pode ser comparado a uma lente capaz
de nos ajudar a olhar para nós mesmos. Vejamos um exemplo, considerando
que a maior parte das pessoas entra em “férias” durante Janeiro: o que fazer
nas férias, trabalhar nas férias, tédio nas férias, raiva do tédio nas férias,
medo do tédio, com quem passar as férias, dificuldade em ficar com a família
durante as férias, cansaço nas férias, ansiedade pelo fim das férias,
desejo de que as férias não acabem nunca ou, ainda, desejo incontrolável de que
as férias acabem logo, podem dizer muito sobre aspectos importantes da vida,
dos pensamentos e dos sentimentos de uma pessoa.
Outro
exemplo? Vejamos, então. Do latim januarius (também chamado principium deorum),
Janeiro tem esse nome em referência ao deus Jano, considerado pelos romanos o
“deus dos princípios”, o que “abria o ano”, o “porteiro do céu” (janua: porta),
para o qual era oferecido o primeiro sacrifício do ano. Além disso, a
representação artística de Jano sempre o mostra com duas faces – uma
virada para trás, outra virada para frente. Janeiro, desde o primeiro dos
primeiros janeiros, carrega, em si, a simbologia daquilo que precisa (ou pede)
para ser iniciado – mesmo que reiniciado.
Janeiro
propõe começos (e recomeços), propõe planos, perspectivas e preparações.
Objetivos. E, para tanto, propõe análises (do passado, do presente e do
futuro), propõe estudos, estratégias e recursos. Frente a tantas questões,
dificilmente um psiquismo não se sente tentado a olhar para si mesmo e a
verificar as suas possibilidades, os seus desejos, os seus limites e os seus
potenciais. Janeiro, assim, cheio de circunstâncias, ideias e simbologias,
pode ser uma lupa por meio da qual ampliamos, para as nossas próprias
considerações, as condições psíquicas e existenciais em que nos encontramos.
Exemplos
disso não faltam: as férias começaram e não temos
disposição psíquica ou condições materiais para aproveitá-las? O que fizemos
das nossas vidas até aqui? O tédio e o marasmo dominaram as nossas férias? O
que aconteceu conosco? O ano se inicia e o medo de que tudo se repita nos
paralisa? O que houve com a nossa capacidade de transformar a realidade? A
falta do trabalho está nos deixando deslocados perante os dias e as pessoas? O
que aconteceu com as nossas vidas? Viagens, novidades, pessoas e lugares
diferentes não nos interessam mais? O que houve com a nossa
disposição para a vida? Janeiro tem significado solidão, nada para
fazer e ninguém com quem nos relacionarmos? O que fizemos das nossas relações
sociais? Não tiramos férias, não descansamos e nem revigoramos, social e
profissionalmente, nossos ânimos para o ano que se inicia? O que houve com a
nossa capacidade de, minimamente, planejar a
nossa própria vida? Um novo ano se abre à nossa frente, dezenas de novas
possibilidades estão à espera das nossas iniciativas, mas, estranhamente, não
conseguimos nos mobilizar para planejá-las e efetivá-las? O que houve com
nossas motivações para a realização de projetos?
Desse modo, Janeiro e as suas prováveis questões acabam por nos
colocar em contato com as nossas próprias dúvidas, angústias ou dificuldades
psíquicas e existenciais. Aniversários também podem fazer isso? Sim. Datas
comemorativas, como o Dia das Mães ou o Dia das Crianças também podem nos
levar a mergulhos introspectivos e a reflexões sobre as nossas próprias vidas?
Sim. Feriados prolongados também? Também. E uma tarde qualquer em que nos
pegamos mais sensíveis ou dispostos a avaliar os anos, também pode nos suscitar
autoanálises repentinas? Sim, pode. Então, o que é que Janeiro tem de especial?
A
resposta não é tão complicada assim: Janeiro tem tempo de sobra para nos
empurrar à reflexão (31 dias…), tempo recheado de simbolismos e circunstâncias
com alto poder de nos convidar à vida (início de ano, todo resto do ano à
frente, volta das férias…) e, principalmente, o fato de sabermos que não cabem
mais as justificativas que usávamos para postergar novos projetos (como, por
exemplo, “está todo mundo muito cansado”, “temos que esperar passar as festas
de fim de ano”, “vamos esperar o ano começar e as coisas voltarem ao normal”).
Além
disso – e como já foi dito -, Janeiro vem depois de uma enxurrada de
congraçamentos e confraternizações afetivo-familiares de Dezembro – fenômeno
que, por si só, provoca uma intensa e inescapável mobilização
de sentimentos-pensamentos que podem deixar muitas pessoas em uma
intensa “ressaca” existencial no início do ano (ainda mais em uma
sociedade que caminha para a coisificação e a artificialização de todas as
suas relações sociais).
Sim:
Janeiro é uma lupa voltada para nós mesmos e nos oferece uma chance de
escaparmos das automatizações comportamentais e intelectuais mecânicas às
quais nos submetemos ao longo do ano. Mas… será que aproveitamos bem essa
oportunidade?
Aproveitando a lupa
Alguns de nós, sim. Muitos de nós, não. Algumas pessoas
conseguem aproveitar as oportunidades que a vida lhes dá e, frente às
circunstâncias que trazem informações sobre si mesmas, agarram-se a essas
informações e procuram utilizá-las a seu favor. Janeiro, então, pode ser um mês
terapêutico a essas pessoas. Suas circunstâncias e simbolismos levam-nos a
olhar para dentro de nós mesmos e a vermos, de forma ampliada, como estamos
organizados ou desorganizados, prontos ou incompletos para vários processos.
Às pessoas que não conseguem aproveitar a oportunidade que o mês de
Janeiro lhes proporcionam, a sabedoria intrínseca à humanidade possibilitou
que, sempre e de tempos em tempos, novos janeiros e novas oportunidades
surgissem. As oportunidades são cíclicas, assim como também são cíclicas
os momentos de certezas ou angústias pelos quais passamos. Nada obrigava
a humanidade a criar a simbologia de que, a cada 365 dias, voltaríamos ao
início de algo. Nada, absolutamente nada ocorre, novamente, da mesma forma como
ocorreu um dia. O próprio Planeta Terra pode dar milhões de voltas em torno de
si mesmo e cada volta ter uma história, uma condição e uma posição diferentes
em um Universo em contínua expansão. Nenhum verão é igual ao outro, assim como,
em todo aniversário, ninguém é igual – orgânica e psiquicamente – à pessoa
que era no aniversário anterior.
Mas se temos novos janeiros – janeiros que sempre nos convidam
a novas vidas -, devemos agradecer ao inconsciente coletivo de uma
humanidade que reconhece a importância da pausa, da introspecção e da
autoanálise em nossas vidas de vez em quando. Carros precisam de revisão,
aparelhos eletrônicos portáteis precisam ser recarregados, fatos e histórias
precisam ser reinterpretados, o céu, periodicamente, precisa descarregar
sua eletricidade e as terras precisam de contínuas aragens de tempos em tempos.
O Ser Humano, muito mais complexo e muito mais sensível, criou para si
uma série de oportunidades para, também, descarregar suas tensões, arar suas
ideias e seus sentimentos, recarregar suas energias e reinterpretar suas
histórias de vida. Essas várias oportunidades estão espalhadas ao longo do ano
e são os aniversários, os finas de semana, as datas comemorativas, os rituais
de passagem e os grandes costumes, como casamentos e velórios.
Porém, as circunstâncias simbólicas de Janeiro talvez sejam de uma
natureza mais extensa e inescapável – já que, de um mês, ninguém escapa. Assim
como ninguém escapa de suas próprias condições existenciais e psíquicas –
condições que o primeiro mês do ano, como uma lupa, tem o dom de evidenciar com
a sua original capacidade de nos colocar frente a frente com a nossa
própria consciência, apontar-nos o dedo e nos perguntar:
O que a vida pode esperar de nós no ano que se inicia?
FONTE: http://janeirobranco.com.br/janeiro-o-mes-dos-inicios-fins-e-reinicios/